sábado, 3 de maio de 2014

A LUCIDEZ DE LÚCIFER – SOCIÓLOGO, O GRIOT CONTEMPORÂNEO: A LINGUAGEM SOCIOESTÉTICA ENTRE A NARRATIVA E ALTERIDADE.




I
A Sociologia é uma linguagem e como tal, regida por um ritmo próprio. Ou melhor, pelo ritmo da Modernidade. A passagem da distinção entre psicologia social e uma física/matemática do social, se refere ao esclarecimento de alguns pontos, principalmente as artes, contradições, alienação, fantasmagoria, o patrimônio cultural, a experiência social. O tempo é o primeiro deles, bem como uma noção de tradição, história e vanguarda[1]. O próximo dos pontos depois do tempo, do instante, do momento do fenômeno é a questão do espaço do mundo social, ou seja, a realidade espacial da experiência socialmente compartilhada. Surgem alguns indícios, uma espécie de condição de existência da realidade, o homem entre solidão e sociedade – ou liberdade e labirinto, em outras palavras: crítica da cultura ou barbárie.

A satisfação da ansiedade seja talvez o primeiro impulso da associação entre os homens. Um jogo posto entre a morte – o cessar da experiência – e o tempo, mediado pela memória e a imaginação, ante os processos racionais e o transcorrer da história social – mas que a noção de história foge a todo historicismo.

Ao invés, a linguagem narrativa sociológica está cheia de atualidade, se coloca sem interdições diante do conhecimento. Não há tabus do lado da criação, sempre que se respeite a verossimilhança entre “teoria” e escritura, a científica-escritura. A postura entre o silêncio, essa dita morte da narrativa – como um trauma – e a pavorosa consciência da barbárie resguarda uma preocupação muito especial com as concatenações da conjectura – as conexões da conjuntura.

A sociologia é um panorama, um mirante de onde pode se ver a atividade social. A partir desta visão ajusta-se o foco sobre este ou aquele fenômeno, se procura ir alem dessa fantasmagoria que distorce, em geral, boa parte das narrativas tanto históricas quanto literárias. A sociologia caracteriza-se enquanto um gênero de conhecimento que ao sofisticar com métodos específicos as interpretações atua como uma espécie de crítica científica do social. Ainda mais sendo esta construída, enquanto uma articulação do real e sua construção no plano da linguagem, mas não só filosófica ou empiricista, racionalista ou poética, mas sim enquanto tradução orientada, no processo de estabilização da subjetividade de um autor e sua matéria de estudo no tempo, uma condensação de discursos coletivos de grupos sociais – que se revelam na investigação das relações de poder – a um só tempo estéticas, ideológicas e morais.

II

O sociólogo é um autor para uma sociologia como narrativa (teórica/científica) – orientada pela epistemologia do método de pesquisa para tomar conhecimento do fenômeno. A teoria social se encontra num intervalo entre a informação produzida pela imprensa, seu poder de comunicação a um leitor solitário, ou a uma comunidade característica, como a acadêmica, e as memórias coletivas e individuais, as reminiscências, o grau tutelar do artesanato intelectual da atividade sociológica o que faz do sociólogo, algo mais do que um cronista ou relator de viagens, mas sim, esse griot contemporâneo.

A linguagem sociológica distingue-se em muito dos outros gêneros narrativos, par excellance. Distinto do romance não apenas pela referência a verossimilhança, em detrimento da ficção, ainda que um modelo teórico, ou melhor, um paradigma metodologicamente orientado, tenha muito de um mundo ficcional como o mundo medieval de Umberto Eco, em o Nome da Rosa. Frente a crônica a sociologia se separa quando ao auferir das relações sociais valores que as podem ser prescritivas, as questões éticas e morais tratadas assim como no mito, enquanto um recurso social para dar lições e conselhos, estas são vistas a luz da sociologia como normas de conduta e práticas que representam e significam a condição de estar em sociedade. 

Der Erzähler, esse homem-linguagem, este pensador que é a um só tempo a ação de narrar e o fenômeno narrado, o texto que descreve e o escritor que escreve, é de uma só vez familiar à experiência social, capaz de nomea-la, circunscrevê-la dentro de conceitos e categorias, mas também capaz de uma estranha forma de conhecer, a presença que em sua atualidade está próxima, mas no transcurso do tempo se distancia, ou afasta-se do objeto que investiga, do fenômeno que narra. Walter Benjamin, no célebre texto de 1936, sobre a condição no narrador na modernidade, aponta que a arte de narrar depende de “um observador localizado numa distância apropriada e num ângulo favorável. Uma experiência quase cotidiana nos impõe a exigência dessa distância e desse ângulo de observação.”

Assim, a narrativa do sociólogo deve contribuir não só para “intercambiar experiências”, mas para, de forma crítica, compreendê-las num âmbito em que se reúna, Teoria e Epistemologia, no exercício de atribuir sentidos e significados desapercebidos para a vida social, ou aparentemente reproduzidos de formas automata, capacitando ao leitor, modos de ver e interpretar em sua própria realidade  e suas questões propostas pela visão atividade sociológica.

As vicissitudes de uma manifestação social não estão no controle daqueles que a manifestam, ainda que estes contribuam ora para a sua manutenção, ora para sua transformação. A passagem do conhecimento que garante a permanência daquele rito, ou daquela manifestação, é uma sucessão de narrativas e suas “leituras” e adaptações, para cada época a partir de cada sujeito e cada povo que manifesta esses dados históricos. Hoje, a natureza e, mais ainda, a natureza do tempo é a atual inevitabilidade contra a qual o homem não sabe mais se rebelar, como outrora nos auspícios deste sonho louco da razão que foi a modernidade.   

Por ocasião de refletir sobre a história oral e num aspecto bem mais ampliado, o hall bem mais vasto da cultura tradicional, retomo as palavras de Benjamin para pontuar que em uma sociologia narrativa, nessa escritura-científica, deve-se prezar que “entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos.” Ou seja, o mais útil para esse narrador, caracterizado pelo estilo de vida – o habitus científico do homos sociologicus – mas principalmente ser marcado pelo cosmopolitismo do trânsito ou o que constrói e reconstrói as histórias de seu país e as tradições de sua nação.

Lembrando-se que, quando exponho uma forma de autonomia narrativa, não significa ausência de estrutura ou hegemonia, mas sim um sentido que busca estar em par com as visões mais fundamentais de liberdade humana. Seja autonomia da cultura posta entre a identidade e a representação, ou da arte entre a criação e a reprodução. A autonomia não é liberdade absoluta, mas sinônimo relativo de possibilidade e invenção, a um só tempo que circunscrito e transbordante – autonomia é saber abrir a comporta no regime fechado de uma represa.

III

O ético e o moral, o étnico e o cultural, são as formas da estruturação ontológica do mundo – o fundo no sem fundo das contradições políticas, econômicas e sociais. E a estética é o princípio de todos os fundamentos. Porque é através da imagem[2] que tomamos contato com o mundo – mosaico imaginado – fantasmagoria percebida pela consciência sob a noção de “apercepção sociológica[3]”.

Nesse sentido, a alteridade, ao invés de indicar aparentemente, contradição, diferença ou isolamento, pode significar o “sentimento” de “ver-se o outro em si, de constatar-se em si o desastre, a mortificação ou na alegria do outro”, nas palavras de Oswald de Andrade. Segundo o mesmo, a alteridade no caso brasileiro é uma reminiscência da cultura matriarcal. O ponto de partida dessa visão pode ser encontrado na expressão de “identificação” que os indígenas ao receber em sua taba o estrangeiro manifestavam-se por meio de “lágrimas e lástimas”.[4]

Uma situação de concorres entre egoísmo e individualidade frente à vida em solidariedade dos povos americanos pré-colombinos, se constata pelas formas em que a vida social é afetada pela determinação objetiva e psicológica das relações de propriedade privada em emergência na sociedade capitalista. O que com o apartamento do homem do sentido de comunidade ou vida coletiva o permite engendrar a individualidade como uma separação, ou no termo marxiano uma alienação de uma suposta consciência coletiva socialmente compartilhada.

Na cultura não atingida pelos auspícios da Modernidade a relação social é construída solidariamente em referencia ao clã, a tribo ou a comunidade com base em uma Weltanschauung realtiva; já ante o outro se desperta a aversão e o sentido de dominação. O complexo paroxismo entre comunhão e devoração representa-se no rito da antropofagia. O eu e o outro estão em constante imanência. O “medo ancestral” diante da existência, ou seja, esse “pavor” de viver consigo mesmo[5], exige uma libertação que se resolve pela estratégia da devoração, ressignifica-se na contemporaneidade essa condição,[6] na qual solidariedade é alteridade – “um viver nos outros” – ainda que revestida de pressupostos morais.



[1]Para melhor apresentar a questão do tempo é preciso retomar as noções de “comunidade imaginada” de Benedict Anderson, de “invenção das tradições” de Eric Hobsbawn e principalmente a “concepção dialética da História” de A. Gramsci, além das construções sobre história social e “memória coletiva” do M. Hawlbacks. 

[2] Seja a imagem poética, sonora, metafórica, alegórica, etc.

[3] Ademais ver Edmund Hurssel.

[4] CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. Série V Brasiliana, Vol. 168. p. 150. s/d. apud ANDRADE, Oswald. Um Aspecto Antropofágico da Cultura Brasileira – O Homem Cordial (1950).  In: A Utopia Antropofágica. p. 217. s/d. Neste texto Oswald reúne um conjunto de citações que vão desde Sérgio Buarque de Holanda à Robert Briffault.  Os filósofos Sören Kierkegaard, Martin Heidegeer, J-P. Sartre e Karl Jaspers são também acionados, além do poeta Mallarmé.

[5] “em apoiar-se em si próprio em todas as circunstâncias da existência”. HOLANDA, Sérgio Buarque. O Homem Cordial. In: Raízes do Brasil. 2ª edição. p. 213-216 apud (idem.)

[6] Ora niilista, como em Nietzsche ou Sartre, de angústia como em Kierkgaard, cuidado em Hieddger, ou  “naufrágio” como em Karl Jaspers e Mallarmé.(op. cit.)